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BEATRICE E A ARTE DA COLHEITA


Quando me mudei de Boston para Puglia, na Itália, eu não queria fugir do clima gelado, mas das minhas escolhas erradas do passado. Certa vez, ouvi que, se as coisas estão muito próximas de você, você pode não vê-las com clareza. Eu precisava me afastar - se não de mim mesma, ao menos do meu convívio social - para que eu pudesse ganhar uma nova perspectiva e quem sabe ver a vida com novas cores e sabores.


Minha avó, ainda jovem, impulsionada pela destruição da Segunda Guerra Mundial, fugiu da Itália de barco para os EUA com sua família em busca de uma vida mais tranquila e estável. Ao chegar nos EUA, firmou-se no bairro de North End, na cidade de Boston, e lá permaneceu até seu último dia de vida. Dona Domitilla foi uma mulher forte e, apesar de todas as dificuldades que enfrentou na vida, manteve seu bom humor e carinho pela família.


Desde sua partida há dois anos, sinto que perdi uma grande amiga e conselheira. Durante muitos anos, ela foi uma presença constante em minha vida, fazendo parte da minha rotina diária: saía da escola e ia direto ao seu famoso e tradicional restaurante italiano “La Tavola Della Nonna”. Vovó se orgulhava de ter conquistado três estrelas Michelin, apenas replicando as receitas autênticas que havia aprendido com sua mãe. O restaurante, de fato, sempre foi um sucesso.


Infelizmente, nunca tive aptidão ou talento para cozinhar, apesar das inúmeras tentativas frustradas de aprender essa arte que chamo de culinária. Com sorte, minha família apoiou minha decisão de seguir algo completamente diferente.


Escolhi o direito como profissão e conquistei muitas coisas com esforço e empenho ao longo dos anos, mas a minha ambição e a alta competitividade do ambiente corporativo fizeram com que eu mergulhasse em um mar escuro e solitário, o que fez com que eu perdesse meu referencial do que realmente me guiava.


Nos meus últimos encontros com vovó, ela dizia que eu estava trabalhando muito e que Alessandro, meu noivo, passava muito tempo sozinho com Michelangelo, o cachorro que eu dei a ele com o intuito de fazer-lhe companhia. Vovó estava certa, depois de quinze anos de relacionamento, Alessandro cansou de jantar sozinho, ser interrompido por ligações fora de hora em momentos íntimos, planejar viagens que nunca aconteceram, e a lista de péssimas lembranças continua.


O término me pegou de surpresa. Talvez eu tenha subestimado sua coragem de seguir em frente depois de tudo o que construímos juntos. Nos conhecemos na comunidade italiana quando eu tinha 24 anos e, assim como eu, Alessandro nutria muitos sonhos profissionais. Com o tempo, porém, seus sonhos foram sendo substituídos pelo desejo de formar uma família e ter filhos—um momento que, para mim, nunca chegou de verdade.


Certa noite, depois de meses remoendo todas as vezes em que deixei de estar presente na minha relação, percebi que não havia nada que eu pudesse fazer; afinal, eu não poderia mudar o passado. Foi então, na cozinha do meu apartamento, entre lágrimas e garfadas de noodles — que vovó não fique aborrecida —, que decidi que precisava experimentar novamente o sabor da paixão. Eu precisava conhecer pessoas novas e provar para todos que eu era capaz de me divertir e ter uma vida leve.


Movida por um impulso que normalmente não faz parte da minha personalidade, liguei para o telefone pessoal do meu chefe para dizer que me demitia. No instante em que as palavras saíram da minha boca, um alívio imenso tomou conta de mim, e minha única reação foi dar gargalhadas ao telefone. Meu chefe, obviamente, não entendeu nada e tentou me convencer do contrário, mas eu tinha certeza da minha decisão — e, se há uma coisa que eu sou, é decidida.


Ao pisar em solo italiano e perceber que mal conseguia entender o que diziam, me arrependi profundamente de não ter aproveitado as incontáveis tentativas da vovó de me ensinar italiano. Sabia que a primeira coisa a fazer era me matricular em uma escola de idiomas, para então poder encontrar um trabalho de meio período.


O que eu não imaginava era que, na minha turma, só haveria jovens de vinte e poucos anos, cheios de energia e quase nenhuma decepção na bagagem. Eu era o oposto de tudo isso, mas só tinha uma opção: fazer dar certo! Eu não poderia voltar atrás; nem emprego, nem noivo eu tinha mais.


Caminhei até a recepção da escola em busca de orientação sobre moradia e trabalho. Em meio às minhas tentativas desajeitadas de comunicação, como um sopro do destino, Ágata, uma viajante pronta para a sua próxima aventura pelo mundo, entrou na sala e pediu autorização para colocar no mural um anúncio de trabalho com opção de moradia.


“Eu aceito esse trabalho! Como faço para me candidatar?” – disse a ela na minha língua nativa com a esperança de que ela me entenderia.


“Você não gostaria de saber do que se trata?” – respondeu ela, sorrindo com um inglês quase que perfeito.


“Eu preciso de um trabalho e de um local para morar, então me parece a oportunidade ideal!”


“Estou de partida, mas diga ao senhor Angelo, proprietário da plantação e seu futuro chefe, que você é indicação minha da escola.”


“A que horas devo comparecer?” – questionei, entusiasmada.


“Bem, o trabalho começa muito cedo numa plantação de azeitonas. Sugiro você chegar por volta das 6h da manhã e, não se atrase, pois o senhor Angelo é muito sistemático com sua rotina.” – respondeu Ágata.


Caminhando de volta para o meu hotel, aliviada por ter a oportunidade de fazer uma entrevista, finalmente pude observar com calma a beleza da cidade que escolhi para morar. Tudo aqui parece ter alma — desde as fachadas envelhecidas pelo tempo até o ritmo desacelerado da vida cotidiana.


As diferenças em relação ao lugar de onde vim são tantas e tão profundas que isso me fez ter ainda mais orgulho da trajetória de vovó. Quantas histórias essas ruas de pedra já testemunharam? Entre becos e vielas, roupas coloridas balançavam nas sacadas, e o vento parecia carregar sussurros antigos — mas, por alguma razão, eu ainda não era capaz de decifrá-los.


Na manhã seguinte, antes mesmo de o sol nascer, tentei chamar um Uber até meu destino. Segundo o Google Maps, a viagem de carro levaria apenas 15 minutos, mas o que o Google não me informou foi que, àquela hora, eu não encontraria nenhum motorista disponível. Sentada na recepção do hotel, sem saber o que fazer, xinguei o Universo e todos os deuses da mitologia romana — afinal, eles só podiam estar contra mim.


Na porta do hotel, Massimo — que mais tarde descobri ser neto da proprietária — me observava com curiosidade.


"Qual è il tuo problema, bella? Per tutto nella vita c'è una soluzione."


Eu não fazia ideia do que ele havia dito, mas pelo tom, parecia querer me ajudar. Minha única alternativa foi recorrer ao tradutor. Escrevi um texto tão longo que mais parecia um desabafo sobre minha vida do que uma simples explicação do meu problema.


Massimo continuava falando em italiano, como se eu realmente pudesse entender alguma coisa. Eu já estava perdendo a paciência quando, de repente, ele saiu e voltou com um capacete na mão, estendendo-o para mim. Foi então que compreendi: ele iria me levar até a plantação do Senhor Angelo.


Eu nunca fui o tipo de pessoa que gosta de aventuras. Pelo contrário, até poucos meses atrás, minha vida estava perfeitamente sob controle — ou, pelo menos, era o que eu acreditava. Mas lá estava eu, subindo na Vespa de um desconhecido, rumo a um trabalho que eu não fazia ideia de como realizar.


Ao chegarmos ao meu destino, antes que eu pudesse sequer agradecer, Massimo pegou meu celular com a naturalidade de quem já sabia exatamente o que fazer. Digitou seu número, deu um toque no próprio aparelho e me devolveu o telefone sem dizer uma palavra. Um gesto simples, mas que, de alguma forma, me fez sentir menos sozinha naquele novo mundo. Então, sorri e agradeci.


Na entrada, uma placa discreta exibia o nome "Perla Verde". À medida que me aproximava da casa principal, a brisa da manhã carregava o aroma intenso das azeitonas, que me lembravam o quão distante da minha não-tão-antiga realidade eu estava.


Para minha surpresa, o senhor Angelo falava inglês perfeitamente e parecia carregar a sabedoria de quem havia rodado o mundo. Havia um brilho em sua presença, uma luz que emanava por trás das suas linhas de expressão, como se houvesse um lugar em sua alma que os anos jamais conseguiram alcançar.


Após me explicar toda a rotina de trabalho, mostrar a casa e indicar qual seria o meu quarto, ele me perguntou se eu estava feliz com a oportunidade e se tinha interesse em saber o valor do salário. É claro que eu não tinha do que reclamar. Havia muito a aprender, mas eu estava disposta a viver essa experiência. Combinamos que eu precisaria transferir meu curso para o período noturno e que começaria no dia seguinte. Muito solícito, ele chamou um táxi para mim e garantiu que o motorista me trouxesse de volta no dia seguinte.


Poucas semanas se passaram, e eu havia aprendido coisas que jamais imaginei fazer na vida. Meu dia a dia era exaustivo e, para alguém que sempre foi noturna, a rotina de acordar cedo não foi uma tarefa fácil de assimilar. Aos poucos, fui conhecendo os outros funcionários da propriedade, que ajudam o senhor Angelo a manter a produção de azeitonas e a organização geral.


Diferentemente do que eu imaginava ser a tradicional família italiana, com grandes reuniões, o senhor Angelo mantinha uma vida discreta e solitária, apesar dos muitos funcionários constantemente presentes em sua rotina. Não havíamos conversado sobre vida pessoal até um determinado sábado à noite, quando me juntei a ele na cozinha, enquanto ele preparava um clássico tiramisù.


“Que cheiro delicioso de café! Posso ajudar o senhor com alguma coisa?” – questionei.


“Claro que pode. Misture o licor com o café e mergulhe as bolachas.” – respondeu, apontando para a garrafa.


“Isso me remete à minha infância e traz ótimas lembranças.” – disse com certa nostalgia.


Continuamos conversando, e contei-lhe um pouco sobre a história da minha família, o restaurante da vovó e o quanto ela se orgulhava de sua origem. Ele, por sua vez, me contou sobre sua esposa, que faleceu há muitos anos em um acidente de barco, antes que eles pudessem ter filhos.


“Desde então, conheci algumas mulheres interessantes, mas esses breves relacionamentos nunca foram capazes de preencher o vazio que minha Serena deixou. Com ela, o ar me faltava, o amor transbordava e as palavras escapavam. Talvez, depois de viver um amor como o dela, eu tenha me tornado exigente demais ou apenas um apreciador da minha própria companhia.” – disse ele com a leveza de alguém emocionalmente consciente e maduro.


“Mas, me fale sobre o real motivo que te trouxe até Puglia?” – completou.


Resumi o drama da minha vida em longos 20 minutos de conversa e, enquanto eu falava sem parar, o senhor Angelo, sentado à minha frente, parecia estar fazendo uma leitura das palavras não ditas por mim. Por vezes, ele apenas assentia levemente, como se já conhecesse o peso das minhas pausas e a melancolia por trás do meu tom de voz. Quando terminei, houve um breve silêncio.


“Beatrice, você semeou tanto e colheu tão pouco” – disse ele, finalmente. – “frequentemente, na jornada da alma, os momentos mais valiosos são os nossos erros. Você me entende?”


“Sinceramente, não!” – respondi, confusa com sua colocação.


Ele sorriu levemente, como quem já esperava minha resposta.


“Os erros que você acredita ter cometido no seu relacionamento trouxeram você a um lugar que, de outra forma, teria evitado. Portanto, você deve aceitar e tratar suas falhas e feridas com compaixão, como se fossem sementes que, no tempo certo, germinarão em sabedoria. Mas somente a reflexão lhe trará a profunidade das experiências.”


“Eu prefiro esquecer tudo o que fiz, porque me sinto culpada por não ter sido uma boa noiva.” – confessei, envergonhada.


“O sentimento de culpa não tem nenhuma utilidade prática em nossa vida. Ao longo da existência, acumulamos experiências, mas, muitas vezes, perdemos o significado delas. Devemos integrar tudo aquilo que nos acontece, de bom e de ruim” – explicou-me, segurando minha mão. – “Você aprendeu tão rápido a colher as azeitonas Beatrice. Agora, você precisa aprender a desenvolver a colheita interior, pois isso lhe dará um sentimento de pertencimento consciente das experiências vivenciadas pela sua alma.” – completou.


 Baixei os olhos e deixei que suas palavras ecoassem dentro de mim.


“Pense com carinho nisso, a vida não se trata apenas de acumular momentos, mas de encontrar sentido neles.” – finalizou, saindo com sua taça de vinho.


Mais tarde, naquela mesma noite, sentada na sacada do meu quarto e saboreando um pedaço do melhor tiramisù que já havia provado — com exceção do tiramisù da vovó, é claro —, refleti sobre o peso que há meses carregava comigo, simplesmente por não ter peneirado os frutos dessa minha amarga experiência. Eu estava sendo assombrada pelo meu passado e precisava me perdoar para que minhas feridas pudessem cicatrizar.


Observando a enorme plantação à minha frente, perdida em meus próprios pensamentos, senti o celular vibrar no bolso. Era uma mensagem em italiano.


“Buonanotte, bella! Me perdoe pela mensagem, não quero parecer invasivo, mas, como não nos falamos desde aquele dia, gostaria de convidá-la para um café amanhã de manhã?"


Depois de escrever e apagar uma resposta milhares de vezes, respondi:


“Nos encontramos no Veronero Café às 9h.”


Nosso dia não poderia ter sido mais especial. Conversamos sobre a vida e demos muitas risadas. Massimo, além de bonito e inteligente, me encantou com sua leveza e com o brilho despreocupado no olhar de quem sabe encontrar alegria nas pequenas coisas. Nas poucas horas que passamos juntos, descobri que ele nasceu e cresceu em Puglia e, assim como eu, não seguiu os negócios da família, dedicando-se à medicina geriátrica.


Ao final do passeio, no caminho de volta para casa, Massimo fez questão de me mostrar seus lugares favoritos da cidade, desde restaurantes até pontos nada turísticos, mas que tinham um significado especial para ele.


“Obrigado pelo privilégio da sua companhia”, disse ele.


“Eu que agradeço por me apresentar lugares encantadores que jamais teria conhecido sozinha”, respondi, olhando em seus olhos.


“Acredito que esse seja o benefício de viver há 42 anos no mesmo lugar”, comentou, sorrindo. Mas então, hesitou por um instante antes de continuar, como se escolhesse as palavras com cuidado.


“Beatrice, gostaria de vê-la novamente… talvez para um jantar?”


Segurei o olhar de Massimo por um instante, sentindo meu coração acelerar com a expectativa em seus olhos. Tudo dentro de mim queria dizer sim, queria me deixar levar pelo momento. Mas uma parte ainda ferida me puxava para trás.


“Massimo… quando decidi vir para a Itália, acreditava que precisava me apaixonar novamente. E, de certa forma eu estava certa. Mas o que eu não sabia era que, antes de tudo, precisava me apaixonar por mim mesma e pela minha história.” – tentei explicar-lhe.


Vi sua expressão suavizar, como se entendesse mais do que eu conseguia expressar.


"Eu não quero que pense que não gosto da sua companhia, porque gosto. Muito." – suspirei, procurando as palavras certas.


Ele assentiu devagar, como quem respeitava o tempo que eu precisava. Então, abriu um sorriso gentil.


"Quando estiver pronta, espero que ainda goste de café." – disse Massimo.


Desde o nosso encontro, nunca mais o vi. Sigo sozinha, embora nos falemos quase todos os dias por mensagens. A vida na Itália, tem me ensinado muitas coisas. Parei de buscar o extraordinário e entendi que a vida acontece todos os dias. Estou aprendendo a cantar minha própria canção, redefinindo prioridades enquanto aprendo a lidar com as feridas ainda abertas do passado.


Estou sem pressa, aprendi com o senhor Angelo que nada se colhe antes da hora, os frutos só amadurecem no seu próprio tempo, assim como as experiências da vida que só passam fazer sentido mais adiante, quando já adquirimos um certo grau de maturidade.


Hoje, minha carga de trabalho na plantação foi reduzida para apenas dois dias na semana, pois consegui um emprego em um café no centro, onde precisavam de alguém que pudesse atender em inglês os turistas da cidade. Mas eu não poderia deixar para trás o senhor Angelo, que se tornou não apenas um grande amigo, mas também um conselheiro.


Bem, nos meus dias de folga aproveito para explorar vilarejos próximos e provar o melhor da culinária italiana. Espero que vovó esteja orgulhosa de me ver aqui, revivendo a nossa história.


Até breve,

Samira Stoiani

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