No meu trabalho já conheci pessoas de diversas partes do mundo e já escutei incontáveis histórias que dariam um bom livro. Meu horário de trabalho começa normalmente por volta das 7h da manhã e na maioria dos dias só termina quando estou realmente cansado.
Na madrugada de hoje, minha mente não parou um segundo, a insônia tem sido um problema frequente na minha vida. Resolvi começar às 4h da manhã, mesmo sabendo que não teria nenhum passageiro nesse horário, afinal, ainda que sozinho, dirigindo e escutando música sei que posso distrair meus pensamentos.
No ponto de táxi não avistei nenhum colega, mas para minha surpresa havia um jovem monge Hare Krishna me aguardando. Pude identificá-lo, pois uma vez por semana o vejo com um grupo de adeptos pelo centro cantando mantras e distribuindo folhetos sobre palestras no único templo da cidade, mas nunca parei para ouvi-los.
O seu destino era o castelo de Coch que fica a 2h30 de distância do nosso ponto de partida. Antes de começarmos a corrida, informei-lhe que o castelo abriria a partir das 9h30 da manhã e, portanto, chegaríamos muito cedo. Contudo, ele me disse que fazia parte do seu planejamento caminhar pelas trilhas aos arredores do castelo antes que os turistas chegassem.
Pelo retrovisor notei que em seu colo havia um livro de nome difícil, Mahabharata, com muita dificuldade consegui ler. Ao longo dos anos, trabalhando como taxista, desenvolvi um interesse genuíno pela vida das pessoas e aquela era a primeira vez que um monge entrava no meu carro, eu precisava saber mais sobre suas histórias, mas antes que eu puxasse um assunto, ele me disse: “Há anos moro aqui em Cardiff e nunca visitei o castelo”.
“Que bom que para tudo tem uma primeira vez. Na minha opinião, esse é um dos castelos mais lindos de nosso país!” – disse-lhe – “Há quanto tempo você mora em Cardiff?”
“Nasci em Mumbai, na Índia, mas meus pais vieram para o País de Gales tentar uma vida melhor quando eu ainda era criança. O sonho deles era me proporcionar uma boa formação. Médico, engenheiro ou advogado eram as minhas opções.” - respondeu sorrindo.
“Pelo o que posso notar, você escolheu outro caminho!?”
“Na verdade, o caminho espiritual me escolheu e não há como fugir do Dharma. Sigo feliz na minha missão em propagar o conhecimento espiritual na Era de Ferro em quem o materialismo impera.”
Durante nossa conversa, senti como se eu estivesse numa sala de aula e fiquei impressionado com a sabedoria milenar daquela cultura. Perguntei um pouco mais sobre a mencionada “Era de Ferro” e, segundo suas explicações, o Universo obrigatoriamente passa por ciclos de mudanças de consciência, chamado Yugas.
Os Yugas são divididos em 4 ciclos ou 4 Eras: Satya Yuga, Treta Yuga, Dvapara Yuga e Kali Yuga. Confesso que ao chegar em casa tive que pesquisar os nomes dos ciclos, porque não consegui guardá-los na memória, lembrava apenas o nome do ciclo atual em que nos encontramos o Kali Yuga.
De acordo com as escrituras da cultura Hindu, há mais de 3.100 anos atrás iniciamos o Kali Yuga. Nessa Era, a virtude da moral e as nossas capacidades mentais estão no ponto mais baixo do ciclo. Após ouvir suas explicações, não foi muito difícil concordar com seu posicionamento sobre estarmos vivendo neste ciclo.
“Diferente do Satya Yuga em que a humanidade era governada por Deuses e nossas ações e pensamentos eram positivos e elevados, hoje resta apenas ¼ dessas virtudes. Há uma evidente degradação espiritual na sociedade, o conhecimento foi perdido e há uma ignorância sobre nossa verdadeira natureza.” – disse-me com pesar.
Não sou o tipo de pessoa que acompanha noticiários, porém conversando com passageiros e turistas de todos os continentes, acabo me informando de tudo o que vêm acontecendo no mundo. Calamidades naturais, decisões tomadas com base no próprio interesse e ignorando completamente a justiça, manipulação da verdade, corrupção e guerras, são alguns dos muitos assuntos que escuto frequentemente no meu horário de trabalho.
“Descontentamento de um modo geral com a vida, incertezas e o medo do futuro são reclamações comuns no meu táxi.” – disse à ele e notando que eu próprio não dormia a noite toda já fazia dias por conta de uma ansiedade que não sei ao certo nem como e nem quando surgiu.
“A principal característica dessa Era de Escuridão é a identificação com o mundo exterior e a fuga de si próprio, do nosso mundo interior. Os valores do Kali Yuga estão atrelados com a aparência física, a busca desenfreada pela satisfação dos nossos desejos, competitividade, apego aos bens materiais, identificação com a mente e valorização excessiva do dinheiro. Resumidamente, não há gratidão e reciprocidade, nem com o próximo e nem com o planeta.”
“Vendo um monge falar desta forma, me preocupa e me deixa sem esperanças na humanidade.” – comentei rindo, talvez, escondendo um real nervosismo.
“Há um livro chamado A ciência Sagrada em que o autor possui uma contagem diferenciada para cada Era e, na sua visão, já estaríamos num processo de ascensão. O que posso te dizer é que podemos caminhar por qualquer Yuga e vivermos em angústia ou em completa plenitude.”
“Você quer dizer que somos nós que definiremos a nossa experiência?” – questionei.
“Somos o que somos como uma consequência daquilo que acontece dentro de cada um de nós. Não precisamos esperar a chegada da Era de Ouro para elevarmos nossa vibração, podemos e devemos começar agora. O retorno de um Avatar, seja na minha ou na sua religião, deve acontecer dentro de cada um, com o despertar de valores esquecidos, assim, desvendamos maneiras de nos elevarmos individualmente e contribuímos para o aumento da consciência coletiva.”
Permaneci reflexivo por alguns instantes, talvez eu tenha me deixado contaminar com o mundo exterior e com a velocidade com que as coisas acontecem hoje em dia, sem perceber permiti que o medo e a insatisfação tomassem conta da minha vida, me afastei da minha verdade e deixei de acreditar em algo mais elevado. Aquele monge não sabia, mas ele me ajudou a enxergar que a minha vida estava uma verdadeira bagunça.
Ainda restavam alguns poucos minutos antes de chegarmos ao seu destino, então, decidi fazer uma sincera e difícil pergunta: - “Como eu elevo minha vibração? Como permanecer positivo diante de tantas coisas ruins acontecendo no mundo?”.
“Quando estamos há muito tempo desconectados de nós mesmos, é comum passarmos por momentos de dúvidas, mas é importante sabermos navegar por essas águas. Integrar a espiritualidade na sua vida é um passo primordial e fundamental na conquista de uma vida mais leve e integrada com o Divino que habita em você. Outro ponto importante é remodelar sua mente, ou seja, mudar hábitos negativos e criar novas impressões. Observe o que você consome nas redes sociais, esses conteúdos contribuem para a expansão da sua consciência ou alimentam suas insatisfações? Por fim, e não menos importante, pratique o Karma-Yoga, conecte o papel que você desempenha na sociedade com algo mais elevado.”
Ouvi cuidadosamente suas palavras enquanto estacionava o carro. Aquela corrida tinha sido tão valiosa para mim que decidi não cobrar pelo trajeto, mas ele fez questão de me pagar e disse que se eu desejasse poderia fazer uma boa ação com aquele dinheiro.
Agradeci pela troca que tivemos e perguntei seu nome: - “ Mokshi Swami. Muito prazer em conhecê-lo, Conrad”. Acredito que ele tenha lido nas minhas credenciais que estavam penduradas no retrovisor.
Antes de descer do carro me disse: “Tudo na nossa vida pode ser integrado como parte do nosso crescimento espiritual, mas essas mesmas coisas quando utilizadas de formas inapropriadas, nos tornam miseráveis. Lembre-se que o amor verdadeiro está sempre expandindo e não encontra fronteiras. Quando tudo parecer escuridão, talvez seja você a luz que ilumina a vida das pessoas. Nunca se esqueça que você é um Ser de luz eterna.”
Sem pressa, o vi caminhar por entre as árvores, até desaparecer no horizonte. Retornando para o centro da cidade percebi em mim uma energia diferente que há tempos não experenciava. O amor, de fato, contagia e me fez muito mais leve e disposto a realizar mudanças necessárias na minha rotina.
A vida é perigosamente imprevisível. Mokshi Swami não voltou comigo, mas me trouxe de volta para casa.
Até breve,
Samira Stoiani
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