
Quando me aposentei da vida de jornalista investigativo, tudo o que eu mais desejava era viver em um vilarejo onde eu pudesse passar a maior parte dos meus dias sem fazer absolutamente nada. Foi então que me mudei para Kinsale, na Irlanda.
A decisão não foi nada criteriosa, e a mudança mais simples do que eu imaginei. Nunca fui um acumulador de coisas e, sinceramente, viver em Nova York em um apartamento de 30 m2 não me permitia ter muitos bens. Mudei-me há cerca de oito meses para cá, com apenas duas malas e uma nova vida para ser escrita.
Embora não seja um apreciador de rotina, todos os dias faço exatamente as mesmas coisas. Não sei se a vida pacata de Kinsale me tornou essa pessoa ou se eu mesmo me coloquei em piloto automático.
Acordo e ligo a televisão para ver as notícias enquanto preparo meu café, caminho até o mercadinho da cidade, onde decido o que farei para o almoço. Já as minhas tardes se dividem entre assistir canais de culinária e responder os inúmeros e-mails que curiosos ou produtores me enviam todos os dias sobre os crimes de grande notoriedade que eu cobri enquanto jornalista.
Há duas semanas, enquando estava no mercado decidindo entre uma massa ou um risoto para o almoço, escutei duas senhoras comentando sobre a inauguração de uma floricultura, que aconteceria no primeiro dia da primavera. Pensei comigo: “Será que não tinha uma data mais clichê do que a escolhida? As pessoas hoje em dia ainda compram flores? E quem abre uma floricultura numa cidade tão pequena?” Bem, continuei fazendo minhas compras, afinal, nem de flores eu gosto.
Nunca fui um bom cozinheiro, mas passar tempo na cozinha tem sido minha distração predileta. Passei a vida toda esperando pelo dia que eu pudesse me aposentar, mas hoje sinto que não sei o que fazer com o tempo disponível. A verdade é que ninguém te prepara pra essa fase da vida, você tenta se ocupar e trazer algum sentido para os seus dias vazios de compromisso e responsabilidade.
Nesses últimos oito meses, já testei diversas receitas, e ontem decidi, pela primeira vez, fazer um bolo. Passei no mercado comprar os ingredientes e fui direto à única livraria da cidade buscar um guia prático para iniciantes. Em frente à livraria estava a tal floricultura, que, de acordo com meus cálculos, inaugurou na última sexta-feira.
Disfarçando-me entre os livros, observei a movimentação na floricultura e não pude deixar de notar que uma jovem cega montava os arranjos de flores. Seus dedos pareciam fazer a leitura das pétolas e com muito cuidado ela organizava as flores nas mais belas combinações. Fiquei tão hipnotizado observando-a que não percebi Alfred, o proprietário e atendente da livraria, vindo em minha direção.
“Orla nasceu cega, desde criança a vejo brincando com flores e hoje realizou seu sonho de ter uma floricultura. Você é jornalista, certo? Deveria conhecê-la e escrever uma matéria sobre ela no folhetim da cidade”, disse Alfred, me puxando pelo braço.
Enquanto atravessávamos a rua, disse à ele que eu era um jornalista aposentado e que minha especialidade eram crimes reais e não histórias de pessoas felizes que realizaram seus sonhos. Alfred não ouviu nada do que eu estava dizendo e me apresentou para Orla como um profissional interessado em publicar sua história.
Constrangido com a situação, permaneci calado. Embora eu tenha finalizado minha carreira em Nova York, algo, estranhamente, havia despertado meu interesse. Então, combinei com Orla de retornar no fim da tarde, apenas para saber um pouco mais sobre sua decisão de abrir uma floricultura. Eu não fazia ideia de como conduziria nossa conversa.
Passei anos da minha vida cercado pelo pior da humanidade. Minha profissão roubou minha capacidade de confiar nas pessoas ou de encontrar alegria nas coisas simples. Talvez meu interesse estivesse em entender como uma jovem cega, que vive em completa escuridão é capaz de ver mais beleza no mundo do que eu.
Ao chegar à floricultura, Orla me recebeu no seu pequeno escritório decorado com tulipas azuis e brancas, e um perfume que preenchia todo o ambiente. Peguei meu velho bloco de notas, que não usava há mais de um ano, e começamos nosso bate-papo sobre a escolha do nome “Alvorecer”.
“O alvorecer, assim como os olhos que se abrem pela manhã, traz novas oportunidades de renovação. A luz do Sol é a mãe da vida, sem ela nada existiria. Quando acordamos um novo mundo nos espera, os mistérios do Universo aguardam para serem revelados e surpresas inesperadas podem transformar nossos dias. Uma flor, me remete a essa ideia de um novo começo, um novo dia, uma surpresa agradável no dia de alguém” - disse ela em tom calmo e suave.
“Orla, desculpa minha falta de delicadeza ou meu excesso de franqueza, mas você nunca viu a luz do dia ou a beleza das flores, por que abrir uma floricultura?” – questionei.
“Você está certo, eu nasci cega, mas conheço pessoas que mesmo com uma visão perfeita, vivem em completa escuridão. A rotina torna a vida tão familiar que as pessoas deixam de notar a beleza ao redor delas. Os olhos, acostumados a operar todos os dias param de presenciar o espetáculo que é a vida. É preciso treinar o olhar diante da vida. Como reconhecer a beleza do lado de fora se não encontrar a beleza do lado de dentro? Através do toque, do olfato e do sentir com o coração aprendi a identificar a beleza de uma flor.”
“Você poderia me explicar sobre treinar o olhar diante da vida?”
“O olho humano está sempre selecionando o que quer ver e evitando aquilo que ele não quer. A forma como você percebe o mundo exterior é um reflexo de quem você é ou de como você vive. Cada pessoa, de acordo com as suas experiências, possui uma forma particular de ver a vida. Por exemplo, para os olhos que julgam, tudo está numa única perspectiva; para os olhos medrosos, tudo é uma ameaça; para os olhos que criticam, tudo poderia ser melhor. Essas pessoas vivem em completa escuridão e infelicidade, pois deixam de perceber o real e a beleza presente em suas vidas. Enquanto olhar para fora, você não será capaz de ver nada. Fui obrigada a olhar para dentro e vejo que a vida é incrivelmente bela”, concluiu emocionada.
Enquanto anotava suas palavras, analisei o cenário da minha vida. Mudei-me para Irlanda com o objetivo de começar uma nova etapa e escrever um novo capítulo na minha história, entretanto, amargurado, perdi o brilho pela vida e a capacidade de sonhar. Não sei dizer quando foi a última vez que comprei uma flor ou até mesmo dizer o que de fato eu vi no dia de hoje e nos últimos meses desde que me mudei para cá.
Continuamos nossa conversa, e passei a conhecer a história de moradores de Kinsale que ajudaram o sonho de Orla se tornar realidade. Percebi que minha indiferença e meus inúmeros julgamentos me afastaram de mim mesmo e tornaram meu coração pesado, incapaz de ver a beleza. Minha vida limitada é um reflexo de como tenho percebido o mundo.
“Percebi uma mudança na sua energia. Você está bem?” – ela me questionou.
“Apenas refletindo na lição de vida que acabo de aprender com você. Durante toda minha carreira, escrevi sobre coisas cruéis e sombrias, mas, talvez, agora seja o momento de escrever sobre algo novo, sobre histórias de pessoas como você. Obrigada, Orla. A sua luz interior, iluminou o meu caminho.”
“Fico feliz em ter te ajudado de alguma forma. A iluminação é uma porta que se abre do lado de dentro; sua voz interior te levará a onde você precisa ir e, o mais importante, te ensinará o ritmo da sua caminhada.”
Hoje, quando acordei, não imaginei que o Universo tinha novos planos para mim. Ficou claro que a lei da natureza não opera sobre o caos; ela te coloca a onde e com quem você deveria estar. Apesar do difícil trabalho que realizei ao longo da vida, deixar de usar meus talentos para contar novas histórias, seria um grande desperdicio da minha parte.
Antes de partir, Orla me presenteou com uma rosa e pediu para que eu acrescentasse na matéria um trecho de seu poema preferido de Kahlil Gibran “A beleza é a imagem que contemplais com os olhos velados e a canção que ouvis com os ouvidos tapados...”
Caminhando de volta para casa, observei todos os elementos que compunham o cenário e pude ver a cidade de Kinsale como nunca havia visto antes.
Hoje acordei mais cedo do que de costume para contemplar o alvorecer e testemunhar o renascer de um novo EU.
Até breve,
Samira Stoiani